Memórias do "holocausto brasileiro"
Sessenta mil pessoas perderam a vida no hospício brasileiro de Barbacena, em pleno século XX, à fome, com frio e vítimas de tratamentos extremos.
A Renascença falou com Daniela Arbex, jornalista e autora do livro “Holocausto Brasileiro, que dá pela primeira vez voz aos sobreviventes desta casa de horrores, onde os pacientes bebiam água do esgoto e eram exterminados com electrochoques tão fortes que deixavam toda a cidade sem luz.
A vida não tem preço, esta história é claramente uma tragédia. Ainda assim, pode ser questionável chamar-lhe “Holocausto Brasileiro”? Achei que era o melhor nome para esta tragédia porque, da mesma forma que judeus foram mandados para os campos de concentração nazi em vagões de carga, os pacientes do Colónia também foram enviado para o hospital em vagões de carga, num caminho sem volta, para o inferno. e quando eles chegaram ao hospital também passaram por um banhos de desinfecção, as cabeças rapadas e a identidade confiscada. nós não tivemos, claro, um saldo de seis milhões de mortos, mas o que aconteceu no Brasil foi realmente um Holocausto.
Esta era uma história esquecida ou desconhecida da opinião pública brasileira?Não, era uma história esquecida, ela tinha sido contada em 1961, pelo fotógrafo da revista "O Cruzeiro", na altura uma das maiores revistas do Brasil. Depois ela foi recuperada com impacto em 1979, numa série de reportagens intituladas "Nos porões da loucura", escritas pelo jornalista Hirim Firmino, e através de um documentário muito forte, até hoje impressionante, intitulado "Em nome da Razão". Mas esta é a primeira vez que os sobreviventes foram procurados, esse é o grande mérito deste livro. Eles nunca tinham sido procurados, é a primeira vez que eles ganharam voz e quando puderam falar chocaram o Brasil.
Como reagiram os brasileiros a este livro?O impacto foi impressionante, o Brasil realmente chorou. É impressionante, é uma história esquecida, mas também desconhecida. A maioria dos brasileiros não sabia o que se passou no hospital, há pessoas de diferentes gerações chocadas com o que se passou ali dentro. Os próprios moradores de Barbacena, onde está o hospício, dizem que não tinham noção da dimensão desta tragédia. Então, esta é uma história esquecida e desconhecida, acho que mais desconhecida que esquecida.
Mas não havia trabalhadores de Barbacena no hospício? Como podem dizer que não sabiam o que se passava dentro daqueles muros?A maioria da população disse desconhecer o que se passava lá dentro. Quem trabalhou e ainda trabalha no hospital também não tinha dimensão desta tragédia. Só depois de serem entrevistadas e de reflectirem sobre o que passaram, viveram e fizeram é que tomaram consciência da extensão desta tragédia. Muitas nunca tinham contado nada a ninguém, nunca falaram publicamente, acho até que se negavam a pensar no assunto. Foram várias entrevistas, com as mesmas pessoas, até conseguirmos que se sentissem à vontade para contar as suas histórias.
Foi difícil chegar a estes testemunhos?Foi, muito difícil. A resistência inicial era muito grande, não das vítimas, as vítimas foi difícil encontrá-las, localizar os sobreviventes. No caso das testemunhas, os funcionários, os ex-funcionários, a resistência era enorme, porque sentiam-se "acusadas" desse crime. Tentei sempre despir-me de preconceitos para ouvir sem acusações e no final as entrevistas eram quase uma confissão. Tanto que uma funcionária, já no final da entrevista e depois de muita resistência, disse-me que "podia ter evitado muitas mortes". Perguntei quantas. Respondeu-me "dezenas, talvez".
Quanto tempo durou a investigação?Essa história está na minha vida desde 2009, quando tive acesso ao primeiro conjunto de fotos, feitas no interior da unidade, pelo fotógrafo Luís Alfredo, em 1961. A partir desse momento a minha vida mudou, porque não parei de insistir junto do jornal para que me autorizasse a contar esta história. Investiguei durante um ano para escrever o livro, viajei todos os fis de semana para recolher estes testemunhos.
Falou em fotografias internas, da instituição, mas há aqui também material de reportagens fotográficas.Sim, muitas, e documentos. Reuni muita informação, para além do que está publicado, mas dei prioridade ao que podia documentar. Isto é apenas uma parte do material recolhido. Estamos até a pensar publicar num site, daqui a um tempo, para disponibilizar à população e para quem quiser conhecer melhor esta história.
Há aqui imagens muito fortes, como foi o processo de selecção?Foi muito difícil. O Luís Alfredo tem três centenas de fotografias tiradas no interior do hospício, todas muito fortes. Todas contam uma história dolorosa. Publicámos no livro 40, apenas uma pequena parte. Recentemente tive acesso a um novo conjunto de imagens, de 1979, que provam que nos 18 anos em que o hospital foi controlado pela ditadura a situação agravou-se imenso. Estamos a tentar garantir os direitos deste material para prolongar o livro.
Quem ia para este hospício? Segundo o livro apenas 30% eram doentes mentais. Quem eram os restantes?Todo o tipo de indesejados sociais, aqueles que eram considerados a escória da sociedade. Os negros, os pobres, as meninas que tinham perdido a virgindade antes do casamento, homossexuais, militantes políticos e os insanos ou doentes mentais. Quem não era considerado digno de estar no meio social era confinado a este hospício.
Vinham de todo o país ou só daquela região, Minas Gerais?Dos quatro cantos do Brasil. Pelo número de brasileiros que entraram em contacto comigo depois da publicação do livro, para dizerem que têm um parente que esteve lá internado, parece que toda a gente teve alguém conhecido em Colónia.
Em que condições viviam?Eram muito precárias. Barbacena é ainda hoje uma cidade muito fria, ao contrário do que é normal no Brasil. Estas pessoas viviam em condições de insalubridade, nuas, não porque queriam mas porque não havia roupa para todos, subnutridas, recebiam electrochoques, as que ousavam questionar a autoridade eram fechadas em celas durante bastante tempo e só viam a luz do sol 20 minutos por dia. Foram estas condições que acabaram por gerar estas mortes em massa.
Quais foram os episódios mais difíceis de escrever/descrever?Todas são muito difíceis. A minha preocupação, porque elas já gritam por elas, foi não colocar mais tinta. Tive o cuidado, mesmo expondo estas pessoas, de tentar mostrar todos os lados, inclusive dos algozes (carrascos), tentar mostrar como as pessoas pensavam naquela época, não que isso justifique, mas como elas viam o que estava a acontecer se percebiam.
Como é possível ninguém ter sido chamado à justiça? Foram feitas reportagens durante os 80 anos que o hospício esteve aberto. Isso está a acontecer agora, com o livro. Parece que já temos centenas de acções movidas contra o Estado, a partir das denúncias escritas no livro ou dos dados recolhidos na investigação. É impressionante que estas denúncias tenham sido levantadas em várias alturas e nada tenha acontecido. Agora, acho que a responsabilização individual será muito difícil, porque são oito décadas de omissão.
E acredita que desta vez o caso chega mesmo aos tribunais?Não sei se vamos conseguir. Mas a missão do livro era dar a conhecer este holocausto brasileiro, à minha geração e à do meu filho, daqui a 20 anos. Acho que essa missão o livro cumpriu.
O que existe agora no sítio do hospício?O hospital ainda existe. Funciona desde os anos 80 com novas características. Hoje é um hospital regional, com várias especialidades além da psiquiatria, e que serve uma população de mais de 700 mil pessoas. Mas todo o passado não pode ser apagado, até os prédios são os mesmos, nós conseguimos identificar os sítios onde foram tiradas as fotografias do livro.
Este é um caso único no país, havia outros hospícios do género na altura?Ao longo da última década têm sido fechados hospitais psiquiátricos, também por violação dos direitos humanos. No jornal onde trabalho, através de denúncias, já conseguimos fechar quatro hospitais psiquiátricos que funcionavam em condições degradantes, não ao nível do hospital de Colónia, mas também nada melhor. Acho que não tivemos uma tragédia desta dimensão, mais ainda temos hospitais a funcionar de forma precária no Brasil, que estão a ser fechados.